No dia, curiosamente, apenas os 1ºs anos tinham aulas à tarde. Quando qualquer vislumbre de luz vespertina se foi, a aula de Física acabou e os três amigos descobriram que não havia lua no céu, nem sequer a faísca de um brilho de estrela. Eram 18:00 e uma sombra amedrontadora tomou conta do Colégio Fantástico. Por uma força até hoje inexplicável, todos os alunos e professores desapareceram. Apenas Júlia, João, Luiza, Matheus e a escuridão total restaram na escola. Júlia conhecera Matheus, rapidamente, numa lanchonete em março, mas para João e Luiza, ele não passava de um desconhecido estranhamente familiar. Em situações de medo e escuridão, infelizmente, tendemos a confiar em pessoas desconhecidas e buscar desesperadamente a luz. Mal Júlia, João e Luiza sabiam que esse seria seu maior erro... Se os amigos soubessem que é apenas o desconhecido - por todos os males que sofremos e tememos, o mais traiçoeiro e que menos merece nossa atenção - que tememos quando olhamos para a escuridão; ele aparece de várias formas, inclusive inofensivas e prestativas, tudo teria sido mais fácil. Mas a imaginação deles tendia de tal forma a pensar no pior, que o desconhecido mostrou sua pior face. Engolindo o medo, João vasculhou a área e concluiu que a energia havia sido cortada, os celulares estavam “fora de área” e todas as portas e janelas que possibilitariam uma saída do colégio, estavam trancadas. “Ótimo”, pensou ironicamente, “vou dar as más notícias às meninas e Matheus”. Quando concluiu essa medíocre linha de raciocínio, João podia jurar ter visto um vislumbre vermelho nos olhos de Matheus. - Hum...- começou confuso, e tentando, acima de tudo, manter a calma, os pés no chão e ignorar os olhos do desconhecido, que ficavam cada vez mais vermelhos quando João parava de olhar diretamente para eles - Parece que estamos trancados numa jaula sem energia elétrica ou celulares. - Já volto – disse Matheus, enquanto o barulho de seus tênis indicava que ia para leste, a direção do laboratório de química e dos banheiros. Não houve tempo para João comentar sobre os olhos de Matheus, as meninas falarem do medo sufocante do desconhecido, os três pegarem os celulares para iluminar o ambiente, ou dizerem da estranha familiaridade de Matheus - coerente para Júlia e talvez para João e Luiza, considerando que já deviam ter visto Matheus alguma vez no Colégio Fantástico. Súbito, luzes, vultos pálidos e distantes, que estavam e não estavam lá, assim como os olhos vermelhos de Matheus, começaram a se aproximar dos amigos. Com o passar dos segundos, os vultos foram tomando mais forma. Os vultos se tornaram pessoas, “sólidas”, aparentemente tocáveis. A cada passo que davam, o pavor tomava mais conta do coração dos amigos. Abatidas, pálidas, jovens e estranhamente familiares. O número de pessoas parecia aumentar e, quando se deram conta, havia uma multidão paralela caminhando aleatoriamente por toda escola. Os amigos ficaram felizes ao perceber que eram pessoas conhecidas - todos os alunos e professores daquele gigantesco colégio - mas a onda de conforto durou pouco. Quando olharam novamente, João, Luiza e Júlia perceberam que havia um talho de 20 centímetros, exposto em carne viva no braço de uma garota do 3º colegial. Seu olhar era quase indiferente, ela parecia não sentir a dor fulminante que tomaria conta do braço de qualquer mortal. Os amigos diriam que era indiferente porque estava acostumada, ou porque o ferimento tinha cicatrizado, se não fosse pelo fato de que o talho ainda estava sangrando, como se alguém tivesse reaberto ou feito o talho há alguns instantes. Olharam novamente para o local, mas não diretamente para a garota. A colega andava na direção deles... E agora? Teria ela se cortado, propositalmente ou não, desejando fazer o mesmo com Júlia, Luiza e João? O que seria uma faca nas mãos de uma vingativa? Eles se deram conta que a garota, pálida, forte, de olheiras profundas e olhar indiferente conversava com um colega ao lado deles. Mas, agora, quando a miravam,direta ou indiretamente, eram recebidos com um olhar intimidador e raivoso de uma garota ferida. Apavorados, saíram de perto da conhecida do 3º colegial e deram de cara com uma perna masculina na mesma situação peculiar. Ela pertencia ao Guilherme, mais pálido do que nunca, cuja única reação foi os encarar, e continuar o trajeto, como se estivesse na rua. Desviaram o olhar, e encararam o talho familiar, dessa vez cortando na diagonal as costas nuas de uma garota de cabelos vermelho-sangue e blusa frente-única preta. Os ferimentos só iam piorando, e cada vez os três irmãos-amigos viam mais pessoas queridas gravemente machucadas. Eles queriam poder fazer algo para ajudá-las, mas se questionavam se realmente estavam lá. Aquele não era o ambiente familiar que eles conheciam, assim como não era mais uma escuridão total, uma vez que os “vultos-pessoas” pálidos eram enxergados. O desconhecido já havia escolhido sua face. O auge do medo surgiu com uma garotinha de 7 anos. A pobre criatura era irreconhecível. Estava extremamente deformada e torturada. No rosto, o queixo estava deformado, com o maxilar inferior projetado para frente; as pálpebras extremamente caídas; os olhos, vermelhos; e a bochecha esquerda, com aquele pequeno talho familiar. O braço direito fora amputado, estava exposto em carne viva e sangrava baldes. Haviam pequenos cortes no outro braço, e suas pernas - cobertas até o meio da coxa por um vestido florido manchado de sangue- tinham vários talhos grandes e profundos, expostos em carne viva que sangravam – era o tipo de ferida que atordoava os três amigos e a sina de várias pessoas naquela cena perturbadora. Por quê?
As orelhas da criaturinha estavam queimadas. Talvez ela fosse surda. As áreas do seu corpinho que ainda tinham pele original estavam vermelhas, ou com manchas-roxas. Seus cabelos eram negros. Um dia ela tivera olhos verdes, fora bonita e feliz. Ela mancava, e era evidente que pouco tempo de vida lhe restava. A criatura chorava sangue e segurava uma faca enferrujada na mão esquerda.
Quando olharam ao redor, Júlia, João, Luiza e Matheus - que acabara de voltar de sei lá onde – perceberam que todos os alunos e professores do Colégio Fantástico formavam círculos macabros ao redor deles, liderado pela criança irreconhecível. Agora, todos tinham as roupas rasgadas, gastas e sujas, e algum tipo de ferimento grave no corpo. Olhando direta ou indiretamente para eles, não havia saída. O ambiente perturbador não era mais paralelo, a multidão realmente estava lá, e encarava os quatro com um olhar raivoso.
- O que vocês querem da gente?- bradou Luiza, as lágrimas brotando de seus olhos.
- Ahh! Eles sabem falar, Adylva! – disse, ironicamente, o professor de música, Harrison, para a criança que chorava sangue. Um aluno fez gestos surdo-mudos para Adylva, comprovando que ela era surda, mas ainda enxergava algo. A mesma respondeu com uma risadinha falhada.
- Diga! Acabe logo com essa tortura.
- Você ainda não viu o que é tortura, minha querida – disse o professor.
- Por favor, não faça nada de mal aos meus amigos... Fiquem comigo e deixem eles livres- interpôs Júlia.
- Não, Júlia! Eu fico no seu lugar – respondeu João.
- Vamos resolver isso juntos, galera – contrapôs Matheus.
- Júlia e João, vocês dariam suas vidas... – começou o professor.
- Sim!- disseram prontamente.
- Por um desconhecido? – Ele batucava uma marcha fúnebre com as unhas compridas na parede.
- Não!- responderam os três amigos prontamente.
- Apenas queremos que vocês aceitem se tornar um de nós. – disse apontando para a faca enferrujada que a criatura Adylva segurava frouxamente. – Se vocês quatro aceitarem, deixaremos vocês irem embora.
- Se apenas um de nós aceitar...? – indagou João
- O acordo valerá apenas para essa pessoa: ele não estará preso, de forma alguma, à essa noite.
- E se não aceitarmos? Vão nos cortar em pedacinhos? – perguntou Luiza, raivosa.
- Bom, se não aceitarem nunca, seremos obrigados a pegar um pouco do sangue de vocês, pra não sentir fome. E claro que ocorrem imprevistos, acidentes com facas, descontroles, entre outros. De certa forma, sim, algum dia vocês virariam salsicha. – falou com um ar indiferente - Não perceberão, mas ficarão presos a este momento uma eternidade, se for preciso, até o dia que aceitarem, ou implorarem (chame como quiser), para se tornar um de nós. Vocês passarão por situações pavorosas, todas as noites, até lá.
- Eu aceito a condição, contanto que eu saia vivo daqui - disse Matheus.
- Não podemos garantir isso...
- Se for pra eu morrer esquartejado, hoje ou amanhã, prefiro que seja hoje a esperar uma data desconhecida.
Matheus mal terminou a última palavra de seu pequeno discurso, para transmitir um grito de dor e agonia. Com exceção dos três amigos, todos se posicionavam indiferentes à situação. Adylva tinha avançado com a faca enferrujada para o braço de Matheus, deixando um profundo talho familiar.
Quando a primeira gota de seu sangue manchou o chão, os círculos se desfizeram, os estranhos familiares desapareceram. As luzes acenderam e o céu apresentou um crepúsculo com tons avermelhados. – Será que o tempo não tinha passado?- As portas se destrancaram, assim como as janelas. Os celulares emitiram quatro sons distintos: eles não estavam mais fora de área.
Júlia, João, Luiza e Matheus, não se deram ao trabalho de pegar o material escolar, saíram correndo do Colégio Fantástico e foram para uma lanchonete não muito longe, que ficava aberta 24 horas.
Luiza, João e Matheus foram os primeiros a entrar no local pouco conhecido. Júlia parou para amarrar o cadarço do tênis. Quando entrou, percebeu que dezenas de olhos avermelhados que estavam e não estavam lá a encaravam, exceto por Matheus, que olhava descontraído o cardápio. Era a lanchonete onde ela e Matheus tinham se conhecido no mês passado. Júlia não avistou João ou Luiza. Ela se sentou junto ao amigo: – Estava amarrando o meu tênis... Nossa que coisa mais estranha aconteceu hoje, hein? Eu achei que aquele bando de mortos –vivos ia me amarrar ao pé da mesa. – disse procurando João e Luiza com os olhos.
Matheus abaixou o cardápio e encarou Júlia.
- Me desculpe, mas... Eu te conheço?